As leis são absolutas?

As leis são absolutas?

A resposta é sim, e ao mesmo tempo, não. 

O Estado de Direito pressupõe o império do ordenamento jurídico. Sem a aplicação das leis, certamente, qualquer país viveria a mais absoluta balbúrdia. Não há dúvidas quanto a isso, mas a nossa reflexão terá por objetivo explicitar que, acima das leis, existem um elemento motivador, um espírito social, uma norma fundamental. Minha intenção é falar dessa norma que gera todo o emaranhado legal. A isso, o filósofo e jurista alemão Hans Kelsen, autor do clássico “Teoria Pura do Direito”, chamou Grundnorm.

As leis nada mais são que decisões tomadas por um povo, num dado momento, e deve refletir a vontade da sociedade. Não sendo assim, a lei é injusta, ilegítima e pode até ser imoral. Por isso, vários doutrinadores buscaram, ao longo da história, abordar, numa vertente filosófica e epistemológica, essa questão. Por evidente, o tema é muito complexo, e não tenho a intenção de o esgotar, o que seria quase impossível, mas, tão somente, provocar uma reflexão…

Kelsen, na sua “Teoria Pura do Direito”, criou uma pirâmide de normas. Segundo a sua visão, a norma maior seria a constituição de um país. Essa seria seguida pelas emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, os decretos, as resoluções e as portarias. Essa construção possui um ordenamento hierárquico. Ou seja, normas menores não podem estar em conflito com normais maiores. Não poderia, por exemplo, um município editar normas de natureza tributária que estivessem em desconformidade com o Código Tributário Nacional.

Contudo, o cume dessa pirâmide é a norma fundamental. No seu magistério, Hans Kelsen explicitou que “com o termo norma se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira” (Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen, 2015, p. 5). Ainda na sua obra, criou a figura do “ser e do dever ser”. Nessa ótica, a norma fundamental dita uma forma socialmente eleita de “dever ser”. E se, ao “ser”, essa norma do “dever ser” for ferida, há que se sancionar aquele que assim o fez. Nessa esteira, ele propôs que a Grundnorm, ou seja, a norma fundamental, essa não escrita, seria o espírito de construção de qualquer ordenamento jurídico.

Assim, todo o ordenamento jurídico seria uma estrutura independente, verdadeira ciência, mas esse mecanismo existiria e funcionaria a partir da norma maior. Essa é a minha intenção: mostrar que as leis são absolutas dentro do estado de direito, mas que elas precisam levar em conta, na sua elaboração, a Grundnorm.

Um comparativo seria um programa de computação. Esperamos dele um resultado qualquer, mas, para se alcançar tal resultado, é preciso alimentar o sistema com os dados corretos. Se o alimentarmos com o dado “x”, o resultado final será “y”; ao passo que, se o alimentarmos com outro dado, o resultado alcançado será diferente. A ideia de Kelsen foi tentar criar uma ciência estanque, independente, que funcionaria “como um relógio”, desde que alimentado com a norma fundamental, que seria a base de toda construção normativa cuja criação se pretendia.

Particularmente, não concordo com o que pretendeu Hans Kelsen, mas, por óbvio, tenho que reconhecer a sua genialidade. Isso porque o Direito, como ciência humana, sempre será permeado pela própria natureza humana, pelas emoções, e por tudo aquilo que gira no entorno do homem. Entretanto, Kelsen foi brilhante ao partir do pressuposto de que as engrenagens do direito girariam azeitadas, desde que as leis fossem criadas em conformidade com a norma fundamental.

Aqui é o ponto de inflexão: onde quero chegar?

A matéria e a obra do genial Hans Kelsen são extremamente complicadas. Mas o seu ponto maior, na minha modesta opinião, seria a Grundnorm, uma vez que dela deriva todo o ordenamento jurídico construído de forma hierarquizada. E a Grundnorm, ou norma fundamental – que não é escrita, não é posta – é soma das experiências do João, da Maria, do José, da Ana, e de todos aqueles que compõem uma sociedade. Simples como descrito. As normas postas precisam derivar da vida das pessoas. Precisam derivar do dia a dia, da necessidade dos cidadãos de alguma localidade. Não se levando em conta tudo isso, não observando essa norma fundamental, teremos um ordenamento jurídico sem base, sem alicerce, sem fundação…

Claro, sabemos bem que uma casa construída sem os devidos alicerces cai. Aliás, o maior dos autores nos ensinou que uma casa que não é construída sobre a rocha rui. Quando uma casa é construída sobre a areia, portanto sem uma fundação, Ele nos narra que “caiu a chuva, vieram as enchentes, os ventos sopraram e deram contra a casa, e ela desabou, e grande foi a sua ruína” (Evangelho de Jesus Cristo escrito por Mateus, 7, 24-27). Longe de ser um legislador, e jamais quis isso, Ele era um especialista na construção de um mundo novo, e de uma justa sociedade. 

Uma nação precisa de leis construídas a partir daquilo que o seu povo precisa. Não é possível que vivamos sob o jugo de leis que não representam o pleito social, e que não atendam, portanto, a norma fundamental para a construção de um ordenamento jurídico que a todos contemple… Enfim, um sistema jurídico criado à margem da norma fundamental, que é a voz da Maria e do João, está fadado à mais absoluta ruína.

Tudo isso posto, sugiro uma reflexão: nossas leis contemplam a norma fundamental? Nosso ordenamento jurídico está fundado na rocha ou na areia? A Grundnorm sugerida por Kelsen rege hoje nossa construção jurídica? Nossas leis são legítimas e morais, justamente por terem sido consolidadas respeitando o pleito social e a norma fundamental, ou apenas refletem interesses de uns e outros? A resposta talvez já tenhamos, e o caminho é construir essa reflexão, certamente com a criação de uma nova constituição para a nossa nação. Afinal, nossas leis, hoje, nos representam?

Por Alessandro Teixeira
Advogado inscrito na OAB/MG

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