Na sua cultura ou na minha?
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– Oi! Beleza?
O rapaz suado, com hálito de quem já bebeu demais, se escora na parede para falar com a mocinha descabelada de tanto dançar.
– E aí?
É a resposta da mocinha, com a sua bata meio hippie colada ao corpo, de tanto suor, os dreds meio desfeitos. Ela olha para ele e já identifica o tipo. Tênis caro, calça de marca, blazer elegante. Filhinho de papai.
– Vamos tomar alguma coisa? Tá mais fácil conversar ali na varanda.
Ela aceita o convite. De fato, impossível conversar naquele ambiente. A música bate-estaca em volume estridente, as luzes piscantes que já incomodavam os olhos, a fumaça que dificultava a respiração. Foram para a varanda. A porta se fechou atrás deles, contendo parte do ruído. Não que ele fosse muito interessante, mas parecia disposto a pagar alguma coisa para ela, que já estava quebrada. Um sinal para o garçom, que imediatamente trouxe duas cervejas importadas, da mais cara da casa. Ela se impressionou, mas não disse nada. Ele sorriu um sorriso simpático.
– Você vem sempre aqui?
Que original! Ótimo jeito de começar uma conversa.
– Não. Gosto mais do La Flor.
Ele fez uma expressão de espanto. Ela explicou.
– Música brasileira, MPB, pagode, Gil, Caetano, Ivete…
– Ah, sim. Música paga pelos impostos dos pobres do Brasil.
– Heim?? – não dava para saber se ela não tinha entendido ou se não tinha acreditado no que ouviu.
– Lei Rouanet. O governo faz o pobre pagar mais caro no supermercado, pra pagar os artistas que apóiam o presidente.
Ela fechou a cara. Não demorou nem dois minutos e o boyzinho de condomínio fechado já estava mostrando quem era. Resolveu ser irônica.
– Ah, tá. Entendi. Você não gosta de cultura. A cultura ameaça o poder dos coronéis.
– Claro que eu gosto de cultura. Amo cultura.
– Vai dizer agora que curte Tribalistas?
– Curto muita coisa. Shubert. Tchaikowski. Vivaldi. Alóki.
Ela riu alto.
– É, tudo a ver!
– Qual é o problema? Sou eclético. Você é que é restrita, só gosta destes restos de tropicália.
– Não é verdade. Cultura não é só música. Cultura é arte, é dança, é pintura.
Foi a vez dele se espantar.
– Mesmo? E você entende de tudo isso?
– Tudo. Sei tudo de Niemayer. Burle Marx. Anita Malfati. Oswald de Andrade. Semana da arte moderna de 22. E faço curso de cerâmica e pintura indígena.
– Que curso você faz?
– Sociologia.
– Hummm… – ele tomou um grande gole, para esconder a expressão mista de “tá explicado” com “onde fui amarrar minha égua”. Continuou.
– Não é isso, é o curso aí que você falou, negócio de índio.
Ela não gostou do tom de pouco caso na voz dele.
– Qual é o problema? Cultura indígena não é cultura?
– É cultura. Uma cultura inferior.
– Inferior???
Agora ela estava escandalizada.
– Fique sabendo que os índios da Amazônia, já faziam pinturas e cerâmicas quase dois mil anos antes dos portugueses chegarem aqui. E já tinham um conhecimento enorme de plantas medicinais, tinham uma mitologia riquíssima e uma sociedade equilibrada e…
– Dois mil anos antes dos portugueses chegarem, os romanos construíram aquedutos, estradas, forjarias, palácios com aquecimento central e faziam sorvete.
-Ah, então só a cultura européia que presta, né? Os povos originários das américas não valem nada.
– Eu não disse isso. Mas dois mil anos depois – ou um pouco mais – os franceses construíram o palácio de Versailles. Orquestras com duzentos músicos, tocando mais de trinta instrumentos diferentes, tocaram a nona sinfonia de Beethoven. Monet pintou os quadros mais lindos da história. E os seus índios continuaram batendo um côco no outro, achando que era música, pintando os mesmos pratos de barro com umas figuras que mais parecem desenho de menino de pré-primário. E morando nas mesmas ocas de palha. E você quer comparar uma cultura com a outra?
– Os saberes são diferentes, não são menores! Os incas construíram Machu Picchu, no topo dos Andes, com terraços, templos, hortas, currais, tudo com pedras de encaixe perfeito! Os aztecas construíram cidades imensas na selva mexicana, com pirâmides feitas em alinhamento com os signos do zodíaco. Enquanto isso, os seus “maravilhosos” reis europeus matavam milhares de pessoas de fome, de doença, de acidente de trabalho, para construir a porcaria do palácio, castelo, sei lá! Luxo pago com sangue! Com muita dor de muita gente! Aliás, essa sua cultura foi trazida pro Brasil pelos senhores brancos, mas quem pagou por ela foram os escravos africanos. Você ainda quer comparar culturas?
– Sim, porque os seus incas também tinham uma família real, e uma casta religiosa, sustentados por um monte de gente que passava fome para eles viverem numa boa. Imagina o esforço de cortar e construir aquele monte de coisas de pedra a 4000 metros de altitude. Os peões eram os nossos índios, escravizados, sabia? E os seus astecas? Quando ficaram apavorados com a chegada dos espanhóis, resolveram subornar os deuses deles com sangue. Mataram 80.000 pessoas em quatro dias, arrancando o coração das pessoas vivas. 10.000 eram astecas pobres, o resto era escravos e prisioneiros de guerra. Crianças pequenas e bebês também. Cultura legal, essa. Vai dizer que eu tenho que respeitar a religião deles também?
– Sei lá, você não respeita nada que não seja europeu…
– A sua cultura faz parte de uma história cheia de podres, a minha também. Porquê só a sua cultura presta? Tudo o que você gosta, ou o que a sua turma de humanas diz que você tem que gostar, é cultura. E tudo o que eu gosto é lixo. É isso?
Ela fugiu da pergunta, questionando as fontes dele.
– Isso tudo aí que você falou é pseudo-ciência, invenção das suas fontes elitistas, tipo a BBC. Supremacia branca, purinha.
– Peraí que eu vou te mostrar o documentário sobre os aztecas da France TV, super de esquerda. Quase comunistas, os caras.
Enquanto ele sacava o celular do bolso, a menina perdeu a paciência e se virou para ir embora. Ele ergueu os olhos bem a tempo de ver os quadris da moça balançando dentro da bata, meio transparente contra a luz da pista de dança. Largou o telefone, alcançou-a, enlaçou a moça pela cintura, sussurrou no ouvido dela algum misto de elogio e proposta indecorosa. Ela arrepiou-se toda, sentindo a barba mal feita dele raspando na sua nuca, seu hálito quente na sua orelha, jogando palavras mais quentes ainda. Não resistiu. Virou-se. Passou as duas mãos pelo tórax do rapaz, depois pelas costas, puxou-o, apertando o corpo dele contra o seu. Olhos nos olhos. Três segundos de silêncio infinito, que ele quebrou:
– Então… na sua cultura ou na minha?
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