O comunismo e eu – Parte I
Apesar de estar sob a jurisdição da União Soviética e a ocupação do país pelas Forças Armadas Soviéticas, a Hungria começou o período pós-guerra como uma democracia livre e pluripartidária, com eleições realizadas no outono de 1945. O vencedor, o Partido dos Pequenos Proprietários, mais à direita no espectro político, obteve 57,7% dos votos, seguido do Partido Social Democrata (partido de centro, centro/esquerda) com 17,41%, e o Partido Comunista Húngaro com 16,85%. Os outros três partidos tiveram menos de 10% cada.
A despeito dessa vitória, o comandante soviético na Hungria não permitiu aos vencedores formarem o gabinete governamental, estabelecendo um “governo de coalizão”, nomeando os comunistas para postos-chave.
Num processo denominado “tática do salame”, fatiavam as áreas de influência do governo legitimamente eleito, concedendo cada vez mais poder ao Partido Comunista.
O breve período de democracia pluripartidária acabou quando o Partido Comunista se fundiu com o Partido Social Democrata para se tornar o Partido Popular dos Trabalhadores Húngaros. Esse novo partido tornou-se único, ganhando as eleições em 1949 com uma chapa única.
A presença das tropas soviéticas foi formalizada pelo Tratado de Assistência Mútua, concedendo direitos à União Soviética para uma presença militar contínua, garantindo o controle político da agora chamada República Popular da Hungria, embora desde 1947 a Polícia Política Estatal (AVH) já atuasse, mostrando o caráter arbitrário do governo.
Antes mesmo das ações estatizantes, os comunistas possuíam uma rede informal de poder e influência em todos os setores da economia. A polícia política tornava-se cada vez mais forte, realocando à força milhares de pessoas para obter propriedades rurais ou moradias urbanas para membros do Partido e remover a ameaça da classe intelectual e burguesa.
Métodos de intimidação, falsas acusações e tortura eram cotidianamente utilizados. Calcula-se que mais de 7 mil cidadãos, denunciados como “agentes ocidentais”, foram deportados para o “leste” (poderia ser desde o leste da Hungria até a Sibéria), ou executados.
Em 1948, num movimento conspiratório, funcionários de empresas são cooptados pelos comunistas e instruídos para, em golpe ilegal, estatizar empresas com mais de 100 funcionários. Essas 594 empresas empregavam 160 mil trabalhadores.
Após a tomada das grandes empresas, tais como o setor energético, mineração e navegação, as ações de empresas na Bolsa de Valores são também confiscadas e o estado passa a abocanhar outros setores da economia. A reforma agrária é imposta e bancos privados são expropriados. Seus donos e familiares, “exploradores” e “inimigos da classe trabalhadora”, sofrem retaliações e perseguições.
As ordens recebidas de Moscou para agilizar a sovietização da Hungria, obedecidas à risca, se mostram claramente com a estatização também de pequenas empresas que tivessem mais de 10 funcionários, já em 1949.
É a total hegemonia do Estado de um só partido político, o auge da polícia política e dos processos persecutórios.
Escolas particulares e de congregações religiosas, teatros, cinemas e associações esportivas são igualmente estatizados e colocados sob a “tutela” de sindicatos. Microempreendimentos também foram desapropriados por “não cumprirem seu papel social”, apesar de eles sustentarem em torno de 700 a 800 mil pessoas. Às vezes não havia nem necessidade da intervenção estatal. Bastava impossibilitar sub-repticiamente a vida dessas empresas com cobranças de altos impostos, políticas cruéis de crédito, controle do fornecimento de insumos ou a diminuição da porcentagem permitida de lucro. Como as reuniões eram rigorosamente vigiadas e denunciadas por agentes infiltrados em todas as atividades sociais, eram também comuns as chantagens e delações.
Mesmo pequenas propriedades rurais foram submetidas à coletivização forçada, com o mesmo discurso de “não cumprir seu papel social”.
Neste quadro histórico-político que as propriedades de minha família foram tomadas.
A região de Szil, no Transdanúbio Oeste, era mais agrária, com importantes trigais e por isso meus avôs investiram sempre na modernização do moinho e da fábrica de massas com as mais novas tecnologias alemãs, ampliação da linha de produtos, sendo inclusive pioneiros em formatos diferenciados das massas alimentícias.
Além do pessoal técnico, muitos empregos eram gerados com mão de obra inclusive feminina, tanto na produção como na embalagem, visto que a fábrica abastecia grande área do país, bem como o exército húngaro.
Por incentivo da minha mãe, implementaram-se atividades culturais e esportivas (futebol e basquete) entre os funcionários, sendo que ela própria jogava na equipe feminina de basquete, participando de torneios regionais.
A estatização alcançou a esse empreendimento também. Meu avô foi afastado definitivamente, enquanto meu pai ainda trabalhou por um tempo para a “estatal” (1949).
Pouco mais de um ano depois da foto acima, a residência da família foi desapropriada e meu pai desempregado (1950). Tivemos que abandonar a casa e nos mudar para outra cidade, para uma casa alugada, em pleno inverno, com nevasca e frio abaixo de zero grau.
Meu pai conseguiu emprego numa fábrica de tapetes. Nessa era stalinista, dobrar as metas de produção industrial se baseava no stakhanovismo. A visão organizacional e experiência prévia de meu pai se destacou, recebendo o certificado de Stakhanovista do ano, em 1951.
Mas as pressões eram grandes para que se filiasse ao Partido Comunista especialmente depois dessa premiação. Era também exigência que todos entrassem meia hora mais cedo no trabalho para ler o jornal do partido. Meu pai se propôs a entrar mais cedo para trabalhar, mas recusando-se terminantemente a ler o jornal e filiar-se ao partido.
Pouco tempo depois, recebeu em segredo a informação de que devido à sua recusa, seria preso e levado para o leste, onde se situavam os campos de reeducação. Meu avô, viúvo havia três anos, considerado como “inimigo da classe trabalhadora”, também corria perigo. Os dois resolveram se arriscar a atravessar a fronteira com a Áustria (1952).
Nessa época, toda fronteira da Hungria com o ocidente, chamada de Cortina de Ferro, era constituída de arame farpado, entremeado de cerca elétrica, minas terrestres espalhadas ao longo dos 260 km, pista de pegadas, além das torres de vigia, patrulhas armadas e sinalizadores.
Foi uma decisão dificílima de abandonar a família, deixando-a inclusive em perigo. Mas não havia outra alternativa. Atravessar a fronteira com todos era inviável.
Como meu avô era um estudioso e grande entusiasta do Brasil, após alguns meses na Áustria, eles decidiram vir ao Brasil, mais precisamente a Minas Gerais (João Monlevade), onde meu pai trabalharia na Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira (1953).
Minha mãe ficou só para criar as quatro filhas, para lidar com as dificuldades, sabendo das retaliações que viriam, mas sempre com muita fé e coragem.
Por Elisabeth Kaiser
Médica cardiologista
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