O comunismo e eu – Parte II
As recordações relatadas aqui não obedecerão a uma ordem cronológica rigorosa, mas manterei a coerência dos fatos.
A cidade para onde nos mudamos após a desapropriação de nossa casa em Szil, chama-se Sopron e é bem próxima da Áustria, numa região pré-alpina. Possui uma universidade importante, cuja origem remonta a 1735, sendo que uma das suas faculdades mais importantes é a de Engenharia Florestal. Funcionava também na cidade, desde 1899, a famosa Escola Superior de Pedagogia Pré-escolar, de base confessional. Em 1951 houve a reforma do ensino, inclusive da pré-escola e a edição de livros didáticos ficou integralmente na mão do Estado.
Foi nessa cidade que minha mãe se viu só, com poucos recursos financeiros, decidindo sublocar um dos quartos da casa para estudantes da universidade ou, no verão, para turistas que aproveitavam o clima ameno e saudável da região.
Ao ficar patente que meu pai sumira, começaram os interrogatórios e investigações. Como dormíamos as 5 em um quarto apenas, as buscas e apreensões acordavam a todas nós, com a polícia política (AVH ou AVO) revirando tudo, tirando-nos da cama de madrugada. Em várias ocasiões levaram minha mãe para interrogatório, deixando-nos sós, chorando, sem entender totalmente o que acontecia. Mas bastaria encontrarem uma nota de um dólar para a pessoa ser acusada de “colaboracionista do ocidente” e ser presa. Tais coisas poderiam acontecer com provas falsas implantadas pela própria polícia política. Nos interrogatórios minha mãe repetia que provavelmente meu pai fugira com uma amante e que ignorava seu paradeiro. A verdade, porém, era que ela recebera notícias através de um padre de Viena que afirmava que duas pessoas muito queridas o visitaram e estavam bem. Nomes não podiam ser citados, obviamente, visto que toda correspondência era aberta e censurada. Posteriormente, quando já podíamos receber cartas do meu pai, muitas vezes o corpo da carta estava pintado de preto, restando quase que apenas a saudação e a despedida.
A censura era intensa em todas as esferas, mesmo nos poucos jornais circulantes. Eles eram proibidos de publicar notícias que pudessem manchar a imagem do Estado forte, imaculado e onipotente.
Em janeiro de 1954 um ônibus cheio de passageiros caiu no Danúbio por falha na manutenção, tanto do ônibus como do gradil da ponte. Todos faleceram, pois o rio fica quase congelado no inverno. Os jornais, entre os quais A Voz do Povo, foram obrigados a publicar que o ônibus estava vazio e apenas o motorista e o trocador que morreram. A anedota que corria era:
São Pedro, ao ouvir batidas, abre o portão do céu.
- Nós somos o motorista e o trocador do ônibus que caiu no Danúbio.
-
Entrem, entrem! Já os esperava, responde São Pedro.
Minutos depois ouve-se grande alvoroço no portão, onde aproximadamente 30 pessoas estão paradas.
- São Pedro, nós somos os passageiros do ônibus do desastre. Deixe-nos entrar!
-
Querem me enganar, é? Vocês pensam que eu não leio a Voz do Povo?
Mesmo estando na primeira série do ensino fundamental, eu entendia a ironia e que verdades eram escondidas.
Embora, teoricamente, houvesse liberdade religiosa as perseguições a padres e pastores eram evidentes e frequentar igrejas não era bem-visto pelo sistema. Nós íamos à missa numa aldeia próxima, cerca de 2 km, para tentar evitar problemas, pois as delações eram incentivadas. Mesmo nas escolas tal prática era estimulada até contra pais e parentes.
As emoções, utilizadas com fins políticos, eram exploradas desde cedo. Fomos ensinadas que Lenin era nosso líder e Stálin, uma espécie de pai.
Estava na pré-escola quando Stálin morreu (1953) e a professora, extremamente compungida, deu-nos a notícia. O rádio tocou música fúnebre o dia inteiro, deixando a todos deprimidos. Recordo o mal-estar que senti, como se tivesse perdido realmente um pai amoroso.
O lado emocional era utilizado também como arma para desestruturar famílias e fomentar divisões. Nos anos 50, ser mãe solteira não era bem-visto. Entretanto o lema na época para as jovens era: “Ser mãe, estando casada, é obrigação. Ser mãe solteira é uma virtude”.
Outro fator preocupante era o abastecimento e acesso aos bens básicos. As famílias recebiam cotas estipuladas de carne e pão, mas muitas vezes, mesmo após horas na fila, não recebíamos esse básico, por escassez dos produtos. Minha mãe, apesar disso, conseguiu manter-nos saudáveis. Tínhamos verduras e galinhas, suprindo-nos de ovos. Comer um frango, porém, era uma festa! E tudo era aproveitado, pés, pescoço, sangue, cérebro e cartilagem. Aproveitávamos também, no início do outono, os cogumelos que colhíamos nas florestas próximas. Eles eram desidratados, podendo ser utilizados ao longo do ano como boa fonte de proteínas. Colhíamos também bolotas (frutos do carvalho) para alimentar o porco que nosso vizinho tinha permissão para criar. Após abatido, ganhávamos um pouco de carne ou linguiça.
Essa carência não era sentida pela classe política dominante. Em certa ocasião fui convidada à casa de uma coleguinha, cujo pai era do Partido. Foi lá que vi e comi banana pela primeira vez na vida. Admirei-me também que ela tivesse seu próprio quarto, com o guarda-roupas cheio de vestidos. Nós usávamos as roupas e sapatos que não serviam mais nas irmãs maiores. Ganhar um vestido novo era luxo raro!
A despeito disso, mamãe cantava músicas alegres durante suas tarefas e surpreendia-nos com piqueniques improvisados, em que um lanche simples se tornava um manjar dos deuses e nos deixava alegres. Ela conseguia fazer mágicos os nossos Natais, mesmo que ganhássemos apenas um lenço de bolso ou uma laranja cada uma. Ainda hoje sinto o aroma dos doces e biscoitos preparados por ela, ouço o sininho tocando, permitindo que entrássemos para ver a árvore de Natal, a emoção das orações de agradecimento pela superação das dificuldades daquele ano.
E foi com essa fé e coragem dela que no final de novembro de 1956 partimos a pé para atravessar a fronteira. Essa época já é muito fria na Hungria. Trazíamos apenas a roupa do corpo, uma valise com os documentos, um pão grande e um recipiente com banha. A Revolução Húngara já estava perdida, os russos estavam com os tanques dentro de Budapeste, as fronteiras seriam em breve fechadas novamente. A esperança de que a ONU ajudasse o levante da população húngara se desvaneceu. Emigramos nos últimos dias possíveis. Cruzada a fronteira para a Áustria, fomos admitidas na carroceria de um caminhão que nos levou a um centro de refugiados em Viena, para onde chegavam doações do mundo inteiro. Ganhamos roupas, abrigo e alimentação, ficando vários meses, até nossa documentação ficar completa.
Saindo de Gênova, Itália, aportamos em 15 dias no Rio de Janeiro, onde meu pai nos aguardava. O encontro foi indescritível, com as filhas disputando quem seguraria a mão de papai. Passamos alguns dias no Rio, conhecendo as atrações e coisas consideradas como “exóticas” por nós. Foi no Rio que ganhei um vestido (só meu!) que eu achava lindo e que usei por muito tempo.
Quando chegamos a João Monlevade, cidade do interior de Minas Gerais, ficamos hospedados num tipo de hotel, aguardando a casa que seria designada para nós. No café da manhã pedíamos, sem parar, mais pão ao garçom. Nunca antes vimos tanta fartura, nem tivemos a liberdade de nos empanturrarmos. Como se houvesse uma fome não só física represada em nós. E estávamos ganhando a liberdade de saciar essa fome!
Por isso, eterna gratidão, Brasil!
Por Elisabeth Kaiser
Médica cardiologista
Leia a primeira parte em https://www.conexaolibertas.com/o-comunismo-e-eu-parte-i/
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