O fim do mundo ou o fim da picada?
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Em meados de 2020, um membro da Suprema Corte, o Ministro Marco Aurélio Mello, criticou o inquérito em curso no STF, sob o n.º 4.871, que passou a ser conhecido como inquérito das fake news, dirigindo-se a ele como “um inquérito do fim do mundo, sem limites”. Disse ainda que ele seria “uma afronta ao sistema acusatório do Brasil” e que “magistrados não devem instaurar inquéritos sem prévia percepção dos órgãos de execução penal”. Tornaremos a falar a posteriori sobre o aludido inquérito, mas é bom frisar de antemão que o Ministro Marco Aurélio foi vencido por acachapantes dez votos e um, com nenhum dos seus pares pensando de forma simétrica a ele.
Contudo, na nossa leitura, razão assiste ao ex Ministro Marco Aurélio Mello…
O citado inquérito foi aberto em 14 de março de 2019, pelo então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, supostamente em razão do fato de o Ministro Alexandre de Moraes ter sido ofendido por um Procurador da República. Ao inovar no sentido de abrir um inquérito até então sem precedentes, disse o Presidente do Supremo ter o mesmo o objetivo de investigar ataques aos membros do STF, bem como apurar noticias falsas envolvendo os integrantes da Corte.
Um primeiro questionamento, imprescindível para a continuidade do raciocínio, é sobre o que vem a ser notícia falsa. Não se pode entender que interpretações distintas sobre dado tema possam ser enquadradas no conceito de notícia falsa. Raras são as verdades absolutas, e aquilo que para um é verdade, para outro pode não ser. Opiniões diversas, incertezas ou dúvidas sobre certas questões não podem ser automaticamente nomeadas como fake news…
A justificativa, data venia equivocada, para a abertura do inquérito, teve como base o artigo 43 do regimento interno do STF, segundo o qual, “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”. Dessa feita, o Presidente do Supremo nomeou o Ministro Alexandre de Moraes como responsável pelo inquérito, sem o usual sorteio randômico entre os demais integrantes da Corte, como sempre foi praxe em todas as instâncias da Justiça, inclusive no Supremo Tribunal Federal.
Percebe-se que o suposto ato ofensivo não se deu nas dependências do STF. Ocorre que se criou uma interpretação, no mínimo espantosa, na qual a ofensa, se reproduzida num telefone celular, computador ou qualquer aparelho similar, dentro da Suprema Corte, deveria ser tratada como se fisicamente estivesse sendo cometida ali, o que, a nosso ver, foi um enorme equívoco interpretativo.
Isso porque a correta interpretação do Regimento, na nossa visão, deveria alcançar somente ilícitos cometidos, de fato, e fisicamente, nas dependências do STF. Não se pode fazer analogia entre atos cometidos de fato no local com reproduções de ofensas em redes sociais num aparelho qualquer, pois, caso o ilícito de fato tenha havido, ele foi cometido no local da gravação.
Também não se pode indicar um Juiz, seja ele de primeiro grau ou do Supremo, sem o devido sorteio na distribuição, especialmente tendo sido o indicado o suposto ofendido, o que configura afronta ao devido processo legal.
O Ilustre Ministro Marco Aurélio, disse ainda que o art. 43 do Regimento Interno, que é anterior à promulgação da Constituição Federal, não teria sido recepcionado por ela, com o que concordamos também. Não obstante, um artigo de um Regimento Interno tem por fim resolver problemas internos de um órgão, e, jamais, poderia se sobrepor a leis federais, muito menos à Constituição da República.
Aliás, recentemente alguns advogados foram impedidos de promover sustentação oral em defesa dos seus clientes, mas foram impedidos pelo Ministro Alexandre de Moraes, sob o argumento de que o Regimento Interno definia que, em sede de agravo, isso não seria possível, e que esse entendimento estaria pacificado na Casa.
Ocorre que a sustentação oral é prerrogativa do advogado na defesa dos interesses dos seus representados, conforme preconiza o Estatuto da Advocacia, Lei Federal, de maior envergadura que um Regimento Interno. Lei essa aprovada pelo Congresso, chancelada pelos representantes do povo, ao passo que um Regimento Interno não tem essa magnitude. Tal fato levou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, o ilustre Beto Simonetti, a coordenar a elaboração e o encaminhamento de uma PEC ao Congresso, para sanar o impasse que não deveria, sequer, ter tomado forma.
Tornando ao caso, o Partido Rede Sustentabilidade provocou o STF, valendo-se da sua prerrogativa constitucional para a propor ação, com o fito de contestar a legalidade da investigação de n.º 4.871, ainda em 2019, sendo o Procurador Geral da República – que é responsável por liderar o órgão acusador oficial – favorável à ação, e contrário ao seguimento do inquérito. Mas, ainda assim, a ação foi relatada, para dar validade ao que se chamaria inquérito das fake news, ainda hoje em curso, sendo o Ministro Marco Aurélio vencido por sonoros dez votos e um, lamentavelmente.
Praticamente já se vão cinco anos de um inquérito sem fim, como bem asseverou o Ministro Marco Aurélio. Pior, essa inobservância das regras de processo e princípios que serão a seguir refletidos, fez com que não somente o inquérito de n.º 4.871, relativo a supostas notícias falsas (ou fake news) estivesse sob a batuta do Ministro Alexandre de Morais, como também o inquérito de n.º 4.874 (das milícias digitais) e o de n.º 4.879 (dos atos antidemocráticos), em patente descompasso com o estado de direito e com inobservância das normas procedimentais citadas e que ainda serão discutidas.
Quanto ao último inquérito citado, o nobre ex Ministro Marco Aurélio Mello disse, com toda propriedade, que “cidadãos comuns, que de certa forma estiveram envolvidos nas arruaças de oito de janeiro, sejam, com prejuízo do princípio do juiz natural, julgados pelo Supremo, pois deviam estar na primeira instância”. Uma vez mais, concordamos francamente com o notável jurista.
Nessa esteira, muitos outros grandes juristas, doutrinadores, professores universitários e advogados militantes, têm apresentado justa preocupação com a forma com que não somente o inquérito em questão, das supostas notícias falsas, mas todos os outros vem sendo conduzidos. Isso se dá em razão da inquestionável violação de princípios e interpretação equivocada de normas penais e processuais penais. Senão vejamos.
Não se pode, sob o argumento de defender a democracia, agir de forma totalitária, até porque para muitas pessoas a maneira de agir do STF pode ser visto como eufemismo, que, na verdade, pretende controlar pensamentos dissidentes, impossibilitando críticas à sua forma de agir, o que, ao final, é a própria essência de uma autêntica democracia…
Seguindo a análise, tem-se que o princípio do juiz natural está sendo desconsiderado, pois os julgamentos dos casos estão sendo feitos pela última instância, suprimindo as demais, o que torna impossível aos réus recorrer de qualquer decisão, justamente porque acima do STF não há qualquer esfera recursal.
Também o princípio da inércia de jurisdição é desconsiderado, uma vez que o Supremo tem agido sem provocação, violando o dispositivo constitucional esculpido no art. 129, da CR. Inclusive, em 2019 entrou em vigor, justamente pelos eventuais abusos havidos na Operação Lava Jato, a Lei 13.964/2019. Não bastasse a Constituição e o largo bojo normativo penal, essa norma prescreve, no seu art. 3-A, que “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Com renovada venia, não há campo interpretativo que possa justificar a inobservância do que ali resta esculpido.
Sob esse prisma, tem-se ainda o desprezo pelo princípio da imparcialidade jurisdicional, pois não é possível admitir que um Juiz que eventualmente tenha sido ofendido possa instaurar inquérito investigatório, para julgar a seguir. O caso recente do indiciamento de Elon Musk é prova vida disso. O ofendido, Ministro Alexandre de Moraes, determinou, com base no art. 43 de um Regimento Interno, a sua investigação. Data maxima venia, um grande absurdo, que fere de morte todos os princípios anteriormente citados.
Some-se a tudo isso outras anomalias, como o fato de inúmeros inquéritos e processos tramitarem sob absoluto sigilo, o que tem impedido até mesmo as partes e seus patronos de tomarem conhecimento do conteúdo dos mesmos, inviabilizando as defesas. Outro problema é a extrema demora, como relatado por muitos advogados, para que as petições sejam despachadas, o que tem resultado ineficácia na defesa, inclusive com a manutenção de prisões preventivas desnecessárias, sendo algumas delas flagrantemente ilegais, o que configura afronta ao princípio do devido processo legal.
O momento é de reflexão. Não podemos deixar de ponderar sobre essas questões. Não se trata mais do denominado inquérito do “fim do mundo”, sem objeto ou limites, e sem data para acabar, mas do fim do estado de direito e do império da lei. Não é possível relativizar tantos pontos, princípios, normas e dispositivos legais. Não. Do contrário, realmente, é o “fim da picada”, e o fim do direito.
Ao negarmos discutir esses pontos, e rever os excessos em curso, estaremos vivendo algo muito parecido com a ficção, na irreverente composição de Herbert Vianna chamada Tribunal de Bar, havida ainda em 1991: “Foi julgado, condenado, executado, sem direito a apelação; foi dissecado, comentado e açoitado pelas línguas no Leblon (…). É o veneno que sai, e te faz, o pior entre os iguais, nos tribunais de qualquer bar”…
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Excelente Jornal, exímio, inteiramente confiável, nota 10 para toda a equipe.
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